Leonardo Boff: entre o Evangelho e a Terra
Por trás do nome consagrado internacionalmente como Leonardo Boff, está Genézio Darci Boff, nascido em 14 de dezembro de 1938, em Concórdia, no interior de Santa Catarina. Neto de imigrantes italianos do Vêneto, Boff poderia ter seguido os caminhos discretos da vida rural ou da religiosidade tradicional. Mas preferiu uma trilha mais sinuosa — e, justamente por isso, mais reveladora: a de pensar Deus a partir dos pobres e a Terra a partir do Evangelho.
Aos 21 anos, entrou na Ordem dos Frades Menores, os franciscanos, e em 1964 foi ordenado sacerdote. Seguiu para a Alemanha, onde completou seu doutorado em Filosofia e Teologia pela Universidade de Munique, em 1970. Voltou ao Brasil com a cabeça cheia das ideias de Teilhard de Chardin e com a alma incendiada pela miséria brasileira. Em pouco tempo, tornou-se uma das principais vozes da Teologia da Libertação, movimento que ousava olhar o cristianismo desde o chão da favela, do campo sem terra, do rosto desnutrido da criança nordestina.
Durante 22 anos, lecionou Teologia Sistemática e Ecumênica no Instituto Teológico Franciscano em Petrópolis, editou revistas como Concilium, Vozes e Revista Eclesiástica Brasileira, e escreveu incansavelmente. Mas foi com o livro Igreja: Carisma e Poder que atraiu a vigilância de Roma. O então Cardeal Joseph Ratzinger, mais tarde Bento XVI, considerou suas posições "perigosas para a sã doutrina". Em 1985, Boff foi condenado a um ano de silêncio obsequioso — uma punição que, para ele, soava mais como elogio. “O silêncio imposto era só institucional. Por dentro, o verbo continuava incendiando”, disse anos depois.
A relação com a Igreja Católica nunca mais foi a mesma. Em 1992, para escapar de nova punição, desligou-se da ordem franciscana e pediu dispensa do sacerdócio — sem que a Santa Sé o atendesse. Juntou-se então à educadora popular Márcia Miranda, com quem já mantinha uma relação desde 1981. “Nunca deixei a Igreja”, repete até hoje. “Deixei a função clerical. Continuo teólogo.”
Sua obra ultrapassa os 60 livros, traduzidos em diversos idiomas, com destaque para Jesus Cristo Libertador, A Águia e a Galinha e Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres. Entre os muitos reconhecimentos, está o Right Livelihood Award, o chamado "Nobel alternativo", concedido em 2001 por sua contribuição à justiça social e ambiental.
Do altar ao ativismo: uma teologia de pés sujos
Sua teologia é uma espécie de cartografia dos oprimidos. Parte da análise crítica da realidade — o que Boff chama de “leitura sócio-analítica estrutural” — e busca nos Evangelhos e nas ciências humanas respostas para a violência contra os pobres e contra a natureza. Não basta compreender: é preciso transformar. Por isso, o teólogo nunca separou reflexão e militância, teoria e prática. Trabalhou com as Comunidades Eclesiais de Base, com o MST, com movimentos sociais e indígenas, com ambientalistas.
Em 1993, foi aprovado em concurso público para a UERJ, onde se tornou professor emérito nas áreas de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia. Passou por universidades da Europa e dos Estados Unidos, como Harvard, Salamanca, Lisboa e Heidelberg. Ganhou títulos de doutor honoris causa e, mais raro, o respeito dos que creem e dos que não creem.
Nos anos 2000, Boff começou a deslocar sua teologia para o campo ecológico. Falava da Terra como mãe ferida. Criticava o mito do progresso infinito e propunha um novo paradigma: o cosmocentrismo, que vê homem e natureza não como opostos, mas como sujeitos dialogantes de uma criação comum. Para ele, o grito da Terra e o grito dos pobres são o mesmo — ambos nascem da mesma estrutura de dominação, exploração e indiferença.
Ética, espiritualidade e o desafio de viver em paz
Sua ética, hoje, é planetária. Defende um pacto civilizatório baseado em virtudes como hospitalidade, convivência, cuidado, comensalidade e paz. A espiritualidade, em Boff, é mergulho no outro — uma “santidade militante”, como diz, que se traduz em solidariedade concreta.
Como todo pensador incômodo, não escapou às controvérsias. Seu próprio irmão, Frei Clodovis Boff, também teólogo da libertação, criticou em 2007 a centralidade do “pobre” em sua teologia, afirmando que isso reduziria o Evangelho a ideologia. Leonardo respondeu com ironia e firmeza, citando Mateus 25: “Sempre que fizestes a um destes meus irmãos menores, foi a mim que o fizestes”. Jesus, lembra Boff, se identificou com os pobres — não com os dogmas.
A figura de Leonardo Boff é paradoxal: ao mesmo tempo padre e ex-padre, místico e ativista, crítico da Igreja e profundo conhecedor da tradição cristã. Vive hoje em Petrópolis, longe do púlpito, e perto das lutas. Participa de eventos da Agenda 21, viaja em palestras pelo país, escreve como quem reza por um mundo melhor.
A Editora Contracorrente, em parceria com o Instituto Conhecimento Liberta (ICL), orgulhosamente lança o novo livro de Leonardo Boff: Sustentabilidade e Cuidado: como assegurar o futuro da vida. Reconhecido por sua atuação em defesa da ecologia integral, Boff alerta para os dois riscos mais graves que ameaçam a continuidade da vida humana: a escalada dos conflitos armados e a emergência climática. Para ele, a resposta não está apenas na ciência, mas nas nossas virtudes mais profundas — a ética, a espiritualidade e o anseio humano por plenitude.