Luiz Gama ganha nova biografia.
Resenha escrita por Marcus Lopes, e publicado pelo jornal 'Valor Econômico de São Paulo' no dia 17 de maio de 2024.
Dos levantes nas fazendas e cidades aos embatesnos tribunais, a luta contra a escravidão no Brasil envolveu personagens quelançaram mão de todos os recursos disponíveis contra os escravocratas, entreeles o direito. Nessa área, ninguém representa melhor o penoso trabalho para alibertação dos escravizados, por meio da justiça, do que o advogado, jornalistae abolicionista baiano Luiz Gama (1830-1882), tema da biografia “Luiz Gama contra o Império – A luta pelo direito no Brasil da escravidão”. Apesar de bastante explorada, a trajetória de um dos protagonistas do abolicionismo no Brasil contém lacunas que, aos poucos, são preenchidas pelos historiadores. Pouco se sabe, por exemplo, a respeito de sua mãe, Luiza Mahin, que teria sido uma das líderes da Revolta dos Malês, ocorrida na Bahia em 1835.
O que se sabe é que ainda garoto o futuro abolicionista foi vendido pelo próprio pai em uma dívida de jogo, enviado para São Paulo como escravizado e lutou muito até conquistar sua liberdade.Tornou-se jornalista, advogado e personagem importante na defesa pela liberdadeno Brasil. O autor, Bruno Rodrigues de Lima, traz um recorte no universojurídico de Luiz Gama e mostra como o abolicionista, sem nunca ter frequentado a universidade, tornou-se um dos maiores juristas da história do Brasil, atuou com o seu conhecimento adquirido nos livros para a construção do direito brasileiro e exerceu papel fundamental na libertação de centenas de escravizados.
“Luiz Gama é um autodidata, no sentido mais radical da palavra”
explica o autor, cuja pesquisa sobre o abolicionista durou mais de 20 anos efoi consolidada como sua tese de doutorado na Universidade de Frankfurt, na Alemanha. Durante o trabalho, que rendeu o prêmio de melhor tese da universidadeem 2022, foram levantados mais de mil textos de Luiz Gama até então desconhecidos do público e que requalificam a importância do advogado abolicionista negro na construção do direito brasileiro.
O argumento central do livro é como Luiz Gama aprendeu direito; como escreveu o direito; como praticou o direito e como inventou o direito”, resume Lima, que classifica a escravidão negra como o Holocausto do século XIX. Um dos casos mais emblemáticos que ilustra esse conhecimento e o domínio jurídico do abolicionista baiano ocorreu na década de 1870, no episódio que ficou conhecidocomo “Questão Neto”. Tudo começa com a morte de um ricaço da época, o comendador português Ferreira Neto, dono de uma fortuna estimada em 3 mil contos de réis (alguns milhões de reais nos valores de hoje), terras, diversas propriedades no Brasil e Portugal e muitos escravizados. Em seu testamento, o comendador, que não teve filhos, expressa o desejo de que os 217 cativos sejam onsiderados livres após a sua morte, o que não foi aceito pelos familiares que disputaram o espólio. E o caso foi parar na imprensa e nos tribunais, já que os próprios interessados na herança não se entendiam. Gama, que pouco tempo antes havia conquistado, após muita luta, o direito de exercer a profissão de advogado mesmo sem ser diplomado, abraçou a causa, que corria na comarca de Santos (SP), e mergulhou na luta pela libertação legal e legítima dos escravizados. Estudou em detalhes o processo, pesquisou por sua conta todo o arcabouço jurídico da época e montou uma estratégia de defesa considerada perfeitano universo do direito. Na perspectiva do abolicionista, não se tratava apenasde uma questão de libertar os escravizados, mas sim reconquistar uma liberdade garantida por lei, já que eram pessoas legalmente livres a partir da morte e abertura do testamento do comendador.
Uma peça jurídica tão bem elaborada e fundamentada que nem os advogados dos herdeiros, todos eles tarimbados professores da Faculdade de Direito de São Paulo, conseguiram contestar perante os juízes. O juiz da comarca de Santos deu ganho de causa a Gama, mas o caso acabou subindo a outras instâncias superiores até, finalmente, ser encerrado pelo Supremo Tribunal de Justiça coma ordem de libertação expressada pelo comendador em seu testamento e defendida pelo advogado abolicionista. Nessa altura, quase dez anos depois, muitos dos libertos já haviam morrido, mas a “Questão Neto” foi importante e serviu como base para outras ações judiciais em defesa da liberdade de cativos, muitas delas com participação direta de Luiz Gama e outros advogados abolicionistas. Na maior parte dos casos, quando os escravocratas eram derrotados na esfera jurídica, apelavam para outra instância, muito comum na época: ameaças de agressão e morte, sendo o próprio Gama vítima de várias ameaças de senhores de escravos por conta do seu trabalho nas cidades do interior paulista. Mesmo assim, ele não se intimidou e, graças à sua obstinação em aplicar a justiça, centenas de escravizados foram libertados em processos movidos nas mais diferentes comarcas.
A escravidão acabou extinta, mas o racismo persistiu após a abolição. O advogado negro que contribuiu para a formação das bases do direitobrasileiro teve a carreira de advogado reconhecida oficialmente pela Ordem dosAdvogados do Brasil (OAB) apenas em 2015, 133 anos após a sua morte.