O jurista que vislumbrou a igualdade como um intelectual do Bronx transformou o Direito em instrumento de emancipação social.
Origens e formação de um pensador do Direito
Da infância no Bronx às universidades mais prestigiadas do mundo.
Nascido em 1938 no Bronx, em Nova York — um bairro que simboliza tanto o encontro de culturas quanto a experiência da desigualdade —, Owen M. Fiss cresceu em meio a tensões sociais e contrastes urbanos que marcariam sua trajetória intelectual.
Filho de uma família de imigrantes judeus, Fiss graduou-se em 1959 no Dartmouth College, uma instituição conhecida por seu ambiente acadêmico rigoroso. Logo depois, mudou-se para a Inglaterra, onde obteve um bacharelado em Filosofia pela Universidade de Oxford em 1961. Essa formação filosófica seria o alicerce de sua reflexão sobre o papel moral do Direito.
De volta aos Estados Unidos, ingressou na Harvard Law School, onde se formou em 1964. Harvard vivia então um período de efervescência intelectual e política, e foi nesse contexto que Fiss começou a moldar uma visão crítica sobre o formalismo jurídico, aproximando-se das ideias que mais tarde o tornariam um dos principais nomes do pensamento jurídico contemporâneo.
A experiência no poder judiciário e a descoberta da justiça social
Entre Thurgood Marshall e William Brennan, a formação de uma consciência jurídica.
Após se formar, Fiss ingressou na Ordem dos Advogados do Estado de Nova York e iniciou uma etapa decisiva de sua carreira: atuou como assistente jurídico (clerk) do juiz Thurgood Marshall, então integrante da Corte de Apelações do Segundo Circuito dos Estados Unidos.
Thurgood Marshall, que se tornaria o primeiro juiz negro da Suprema Corte, era uma figura central no movimento pelos direitos civis. A convivência com ele ensinou a Fiss que o Direito não se resume a aplicar regras — ele é também uma arena de transformação social.
No ano seguinte, Fiss foi contratado pelo juiz William J. Brennan Jr., um dos mais influentes defensores de uma leitura humanista da Constituição americana. Com Brennan, Fiss aprendeu que os tribunais podem ser instrumentos de inclusão e justiça, e não somente de neutralidade.
Entre 1966 e 1968, Fiss trabalhou como assistente especial na Divisão de Direitos Civis do Departamento de Justiça dos EUA, período em que testemunhou de perto os conflitos raciais e as lutas por igualdade nos Estados Unidos. Essa vivência prática consolidou sua convicção de que o Direito só cumpre seu papel democrático quando enfrenta as desigualdades estruturais.
O professor e o teórico da igualdade
Da Universidade de Chicago a Yale: um pensamento que cruzou fronteiras
Em 1968, Fiss iniciou sua carreira acadêmica na Universidade de Chicago, um dos centros mais inovadores do pensamento jurídico norte-americano. Lá, desenvolveu cursos sobre processo civil, teoria da justiça e constitucionalismo democrático.
Em 1976, foi convidado a integrar o corpo docente da Faculdade de Direito de Yale, onde se tornaria Sterling Professor of Law, o mais alto título concedido pela universidade. De Yale, Fiss irradiou sua influência para o mundo: orientou gerações de juristas e fundou programas de estudos jurídicos na América Latina e no Oriente Médio, contribuindo para internacionalizar o debate sobre igualdade e direitos humanos.
Ao lado de Anthony Kronman, dirigiu o Abdallah S. Kamel Center for the Study of Islamic Law and Civilization, ampliando a interlocução entre o direito ocidental e as tradições jurídicas islâmicas.
O pensamento de Fiss e a defesa da igualdade substantiva
O Direito como instrumento de emancipação, não de neutralidade.
A obra de Owen Fiss desafia o mito da neutralidade jurídica. Em The Civil Rights Injunction (1978), ele argumenta que os tribunais devem agir para transformar realidades desiguais, e não somente para resolver disputas. O juiz, em sua visão, tem um papel ativo na reconstrução da justiça social.
Em Liberalism Divided (1996), Fiss analisa as tensões internas do liberalismo moderno: liberdade e igualdade não são valores opostos, mas complementares. O Estado, afirma, não deve limitar-se a garantir a liberdade individual; precisa promover a integração e corrigir as desigualdades históricas.
Em The Irony of Free Speech (1996), talvez sua obra mais conhecida, Fiss critica a visão absolutista da liberdade de expressão. Para ele, a liberdade só é autêntica quando todos têm condições reais de ser ouvidos — e isso exige políticas que combatam o poder desigual de fala.
Outros títulos, como A Community of Equals (1999) e A Way Out: America’s Ghettos and the Legacy of Racism (2003), consolidam Fiss como o jurista da igualdade substancial: aquele que vê o Direito não como um código neutro, mas como uma promessa de inclusão.
Reconhecimento internacional e impacto no Brasil
Do prestígio acadêmico à influência sobre o Supremo Tribunal Federal
O reconhecimento a Owen Fiss ultrapassou as fronteiras dos Estados Unidos. Ele recebeu títulos honorários de universidades como Toronto, Chile, Buenos Aires, Palermo e Los Andes, além do prestigiado Prêmio Henry M. Phillips de Jurisprudência, concedido em 2020 pela Sociedade Filosófica Americana — distinção que, desde 1888, foi entregue a somente 26 juristas.
Quatro de seus artigos figuram entre os 100 mais citados de todos os tempos nas revistas jurídicas americanas. No Brasil, suas ideias influenciam diretamente a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, especialmente em casos que envolvem igualdade e liberdade de expressão.
Fiss também é lembrado por seu papel como mentor de acadêmicos latino-americanos, tornando-se uma figura-chave no diálogo entre o constitucionalismo norte-americano e o pensamento jurídico do Sul global.
Uma nova obra para o público brasileiro
A teoria da antissubordinação chega à Editora Contracorrente.
Em 2025, a Editora Contracorrente lança Uma outra igualdade: teoria da antissubordinação e o potencial transformador do Direito, de Owen M. Fiss, com tradução de Taís Penteado e prefácio de Adilson José Moreira.
A obra, com 516 páginas, reúne ensaios fundamentais sobre igualdade, liberdade e justiça social — textos que moldaram o pensamento jurídico contemporâneo.
No prefácio, Adilson Moreira sintetiza o espírito do livro ao afirmar que o princípio constitucional da igualdade não existe somente para proteger indivíduos, mas também para promover a integração de grupos historicamente subalternizados.
Mais do que uma coletânea, Uma outra igualdade é um manifesto pela reinterpretação do Direito como força de transformação social. Um lembrete, nas palavras e ideias de Owen Fiss, de que a justiça não é uma abstração — é um trabalho coletivo e cotidiano, guiado pela ética da solidariedade.