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Genaro Rubén Carrió

Genaro Rubén Carrió

Direito, Linguagem e Democracia

No pêndulo entre a precisão analítica e o compromisso público, poucos juristas do século XX latino-americano atravessaram com tanta firmeza as tensões entre a técnica jurídica e a reconstrução da democracia quanto Genaro Rubén Carrió. Nascido em 16 de fevereiro de 1922 na Argentina, Carrió foi um intérprete obstinado do direito e das palavras que o compõe — e, ao mesmo tempo, um dos artífices institucionais da redemocratização argentina no pós-ditadura. Sua trajetória, composta de erudição filosófica e pragmatismo institucional, desenhou o retrato de um pensador que se dedicou à linguagem como espaço ético e político de construção da justiça.

Formado em Direito pela Universidade Nacional de La Plata em 1944, Carrió teve como mestre Carlos Cossio, autor da chamada "teoria egológica do direito", que entendia o fenômeno jurídico não como um conjunto de normas autônomas, mas como conduta humana normada. Essa formação inicial, com forte influência fenomenológica, plantou em Carrió a semente do questionamento diante de abstrações jurídicas desconectadas da realidade. Foi na filosofia analítica, na pragmática linguística e, depois, na teoria da linguagem ordinária que ele encontrou o instrumental conceitual para desmontar o essencialismo jurídico e abrir caminho para um direito mais comprometido com o mundo concreto.

Sua trajetória acadêmica é cosmopolita. Nos anos 1950, mudou-se para os Estados Unidos para cursar um Master of Law in Comparative Laws na Methodist University Law School, em Dallas. Ali, teve contato com o sistema do common law e com a tradição realista norte-americana. Foi professor associado da mesma instituição entre 1955 e 1956. Em 1959, recebeu o título de Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires, e mais tarde, entre 1968 e 1969, estudou na Universidade de Oxford, sob a supervisão de ninguém menos que H.L.A. Hart — o autor de The Concept of Law e uma das vozes mais influentes do positivismo jurídico do século XX.

Ao retornar ao Brasil, Gilmar Mendes tornou-se professor da Universidade de Brasília e, em seguida, consolidou-se como um dos principais constitucionalistas do país. Sua leitura era clara: a Constituição de 1988, promulgada com entusiasmo e apreensão, demandava intérpretes preparados para seu alcance transformador. Mendes se dedicou a essa tarefa tanto na academia quanto na administração pública.

Instituições, Traduções e a Gramática da Democracia

Carrió não se restringiu aos debates acadêmicos. Seu pensamento sempre esteve ligado à prática. Em 1983, com a queda da ditadura militar na Argentina, foi nomeado presidente da Suprema Corte de Justiça por Raúl Alfonsín. Ocupou o cargo até 1985. No auge do processo de transição democrática, Carrió viu-se diante da tarefa nada trivial de reconstruir a legitimidade institucional do Judiciário argentino. Sua passagem pela Corte é lembrada por decisões de peso e pela tentativa de recuperar a confiança na linguagem do direito, profundamente desgastada por anos de arbítrio.

Além da Suprema Corte, Carrió atuou como membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, reforçando seu compromisso com o campo dos direitos fundamentais. Foi também professor titular de Introdução ao Direito na Universidade de Buenos Aires e um dos fundadores da Sociedad Argentina de Análisis Filosófico (SAFAD), espaço de interlocução entre o direito, a filosofia e a linguagem.

Sua produção bibliográfica é vasta e relevante. Dentre seus livros mais importantes estão Recurso de amparo y técnica judicial (1959), El recurso extraordinario por sentencia arbitraria (1967), Principios jurídicos y positivismo jurídico (1970), Sobre el concepto de deber jurídico (1966) e Sobre los límites del lenguaje normativo (1973). Escreveu mais de uma centena de artigos sobre teoria do direito, direito constitucional, interpretação jurídica e filosofia da linguagem. Uma das obras que mais delineia sua contribuição ao mundo do direito é Notas sobre derecho y lenguaje, publicada pela primeira vez em 1965 e reeditada em 1990, onde explicita, com refinamento lógico, os múltiplos usos da linguagem no discurso jurídico.

Carrió também foi um dos mais relevantes tradutores jurídicos do espanhol. Traduziu para o castelhano obras de autores como H.L.A. Hart, Alf Ross, W.N. Hohfeld e J.L. Austin. Sua tradução de Some Fundamental Legal Conceptions, de Hohfeld, tornou-se um marco editorial e acadêmico. Acompanhada de uma introdução crítica densa, ela mostrava como expressões como “direito subjetivo” ou “dever jurídico” não nomeiam entidades metafísicas, mas funcionam como operadores linguísticos que expressam relações normativas específicas — pretensões, privilégios, poderes, imunidades e seus respectivos correlativos jurídicos. “As classificações não são certas ou erradas, mas úteis ou inúteis”, dizia ele, com a franqueza dos que conhecem os limites de seu ofício.

O Direito como Arte de Escutar o Mundo

Para Genaro Carrió, a linguagem jurídica é, por vocação, inevitavelmente ambígua. Em oposição às linguagens formais da ciência dura, onde os termos são rigidamente definidos, a linguagem do direito convive com imprecisões, usos emotivos e expectativas sociais. Ao contrário de muitos juristas de seu tempo, Carrió não via nisso um problema, mas uma potência. É justamente porque o direito se expressa em linguagem natural — ordinária, histórica, situada — que ele pode dialogar com a sociedade, incorporar suas transformações, ajustar-se às suas demandas. A tarefa do jurista, para ele, era dar inteligibilidade a esse processo, invocando o sentido das palavras jurídicas na sua função social, e não apenas em sua morfologia normativa.

Sua concepção de linguagem se articula em diferentes registros: o expressivo (ligado à emoção), o prescritivo (voltado à orientação de conduta), o operativo (capaz de realizar ações ao ser enunciado) e o interrogativo (dirigido à obtenção de informação). Cada um desses usos, dizia Carrió, tem lugar no discurso jurídico e nenhum deles é neutro. Interpretar a lei não é apenas traduzi-la; é inscrevê-la no tempo e no mundo dos que a vivenciam.

Morto em 17 de outubro de 1997, Carrió deixou uma obra que permanece necessária. Em tempos de proliferação de discursos autoritários e de esvaziamento semântico de conceitos como “direitos”, “justiça” ou “constituição”, reler Carrió é um ato de formação e resistência. Num cenário em que a desinformação normativa e o uso estratégico da linguagem são armas de guerra política, o pensamento de Carrió nos ensina que o direito só pode ser legítimo se for transparente naquilo que diz e responsável por aquilo que não diz.

A Editora Contracorrente, em parceria com a Editora Astrea, tem a satisfação de anunciar o lançamento de “Sobre os Limites da Linguagem Normativa”, a primeira edição brasileira de uma obra do consagrado jurista argentino.

Para os leitores da Contracorrente, sua trajetória é um lembrete poderoso de que o direito não se sustenta apenas em normas, mas nas palavras que usamos para enunciá-las — e no compromisso ético com aqueles a quem elas se dirigem. Genaro Rubén Carrió soube como poucos que, antes de tudo, o direito é uma forma de escuta. E hoje, escutar talvez seja a mais urgente das virtudes democráticas.

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