Pensamento jurídico e compromisso democrático na obra de Lenio Streck
Há cidades que parecem produzir, de tempos em tempos, personagens destinados a incomodar. Agudo, município rural do interior gaúcho, viu nascer em 21 de novembro de 1955 um desses teimosos profissionais da inquietação: Lenio Luiz Streck, jurista, professor, procurador de justiça aposentado e um dos mais influentes críticos do decisionismo judicial no Brasil contemporâneo.
Antes de mergulhar no Direito, Lenio quase virou goleiro profissional. Atuou no Atlético Clube Avenida de Agudo, no Internacional de Santa Maria e no Esporte Clube Avenida de Santa Cruz do Sul. A carreira não vingou, mas deixou marcas: a agilidade intelectual, o senso de posição e o inconformismo com bolas que insistem em entrar por caminhos tortos — características que, décadas depois, moldariam o “goleiro das garantias fundamentais”.
Em 1976, ingressou na Faculdade de Direito da UNISC, em Santa Cruz do Sul. Ali começou a frequentar um ambiente intelectual vibrante, que o empurrou para cursos de especialização em história, política, sociologia e teoria geral do Direito — quase sempre orbitando a UFRGS. Era o início de uma formação interdisciplinar que se tornaria marca de sua produção acadêmica.
A construção de um professor — e de um crítico
Lenio estreou como docente em 1981, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UNISC. Mas o mergulho profundo na pesquisa viria logo depois, ao ingressar no mestrado em Direito do Estado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Em 1988, sob orientação do irreverente Luis Alberto Warat, defendeu a dissertação “O tribunal do júri e os estereótipos”.
A UFSC também abrigou seu doutorado, concluído em 1995 com tese sobre o poder e a eficácia das súmulas jurídicas, orientada por Leonel Severo Rocha. O tema, aparentemente árido, tornou-se terreno fértil para a crítica que viria a acompanhá-lo: a luta contra o automatismo do Direito, seja na forma de dogmas, seja na forma de decisões tomadas “conforme a consciência” — expressão que renderia mais tarde um de seus livros mais conhecidos.
No intervalo entre o mestrado e o doutorado, Lenio iniciou uma longa carreira no Ministério Público do Rio Grande do Sul, onde ingressou em 1986. Passou por comarcas como Itaqui, Panambi e Santa Rosa, e de 1991 a 1996 atuou como assessor especial do Procurador-Geral de Justiça. Promovido a procurador de justiça em 1996, integrou a 5ª Câmara Criminal do TJ-RS até sua aposentadoria, em 2014.
O paralelo entre a prática jurídica e a reflexão teórica refinou um traço importante de sua personalidade intelectual: o gosto por desmontar mistificações jurídicas. Seu diagnóstico, repetido à exaustão, é direto como uma crônica da Piauí: o problema do Direito brasileiro não é falta de leis, mas de interpretação — ou, mais precisamente, de compromisso hermenêutico.
A consolidação como referência nacional
Em 1996, mesmo ano em que virou procurador de justiça, Lenio ingressou como professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Tornou-se figura central da instituição: ajudou a criar o Programa de Pós-Graduação em Direito, coordenou linhas de pesquisa e, com o tempo, tornou-se líder do grupo “Hermenêutica Jurídica”, vinculado ao CNPq, além de coordenar o núcleo DASEIN.
Em 2001, concluiu pós-doutorado na Universidade de Lisboa, sob supervisão de Jorge Miranda. A partir daí, sua presença no debate jurídico extrapolou fronteiras. Passou a lecionar como professor convidado na Universidad Javeriana de Bogotá, na Universidade Estácio de Sá e na Universidade de Coimbra — e a circular por congressos internacionais ao lado de nomes como Luigi Ferrajoli.
É membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Foi ainda editor, conselheiro e articulista em diversos espaços de debate público, e — não custa registrar — figura frequentemente cotada para o Supremo Tribunal Federal, embora trate o tema com uma ironia que já virou parte de seu personagem.
Em 2015, fundou o escritório Streck, Trindade & Rosenfield, especializado em direito constitucional, administrativo, eleitoral e penal.
A obra e as batalhas intelectuais
Lenio escreveu ou organizou mais de 80 livros, no Brasil e no exterior. Entre eles, destacam-se:
Sua escrita combina rigor acadêmico, humor ácido e uma cruzada contínua contra o “senso comum teórico dos juristas”, como gosta de repetir. É um autor que, ao mesmo tempo, produz teoria constitucional e faz troça do próprio campo, denunciando modismos hermenêuticos e atalhos cognitivos.
Se há um eixo que atravessa sua obra, é a defesa de um Direito comprometido com a democracia e com a historicidade. Hermenêutica, para ele, não é luxo teórico, mas obrigação republicana.
Uma advertência sobre o futuro tecnológico
É nesse espírito que Lenio apresenta sua nova obra, lançada pela Editora Contracorrente: Robô não desce escada e trapezista não voa: os limites dos aprendizes de feiticeiro. O livro é um manifesto contra o encantamento acrítico pela inteligência artificial no Direito.
Streck adverte que o fascínio tecnológico pode nos condenar ao “saber nenhum” — expressão que dá a medida de sua preocupação: um Direito submetido a ferramentas incapazes de compreender contexto, historicidade ou humanidade. Para ele, a IA é como um pincel: poderosa, útil, mas incapaz de captar o essencial. Ao delegar tarefas cognitivas a sistemas que não sabem o que dizem, arriscamos destruir a própria possibilidade de interpretação.
Entre reflexões sobre técnica, política, epistemologia e cultura jurídica, o autor convoca juristas, tribunais e operadores do Direito a enfrentarem os efeitos sociais, éticos e institucionais dessa tecnologia que avança sem pedir licença.
A Contracorrente publica, com satisfação, uma obra que reforça aquilo que sempre marcou a trajetória de Lenio Streck: o grande esforço de lembrar que, no Direito, antes de algoritmos, há humanos — e que nenhum robô poderá descer as escadas por nós.