Gilmar Ferreira Mendes — o Jurista da Constituição
Em 30 de dezembro de 1955, no pequeno município de Diamantino, no interior do Mato Grosso, nasceu Gilmar Ferreira Mendes — figura que se tornaria um dos mais longevos e influentes ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) na redemocratização brasileira. Filho de uma família simples, católica, de comerciantes locais, Mendes cresceu num Brasil em transformação, dividido entre o legado desenvolvimentista de Juscelino, os temores da Guerra Fria e, pouco depois, os ecos do autoritarismo militar. Esses ruídos iniciais de sua formação, misturados ao caldo cultural do interior brasileiro e à experiência concreta com as estruturas do Estado, marcariam toda sua trajetória jurídica e intelectual.
Ainda jovem, Gilmar Mendes foi para Brasília, onde ingressou no curso de Direito na Universidade de Brasília (UnB), recémfundada, símbolo da capital modernista sonhada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Formou-se em 1978, período em que o país ainda vivia sob o regime militar. Na universidade, envolveu-se com o estudo do Direito Constitucional e da Teoria do Estado, áreas que mais tarde se tornariam centrais em sua carreira. Foi orientado por professores que, mesmo nos limites impostos pela censura e vigilância, ainda nutriam a esperança de uma transição institucional progressiva. Mendes assimilou essa perspectiva institucionalista com notável rigor.
Sua trajetória acadêmica deu sequência na Alemanha, na Universidade de Münster, onde obteve o título de doutor em Direito. O contato com a tradição jurídica germânica — marcada pela forte teorização do Direito Público e pelo papel normativo da Constituição — consolidou a base intelectual que o acompanharia nas décadas seguintes. Em sua tese, abordou os fundamentos do controle de constitucionalidade, comparando modelos europeu e latino-americano, demonstrando afinidade com um olhar transnacional e sistemático do Direito.
Ao retornar ao Brasil, Gilmar Mendes tornou-se professor da Universidade de Brasília e, em seguida, consolidou-se como um dos principais constitucionalistas do país. Sua leitura era clara: a Constituição de 1988, promulgada com entusiasmo e apreensão, demandava intérpretes preparados para seu alcance transformador. Mendes se dedicou a essa tarefa tanto na academia quanto na administração pública.
Antes de chegar ao Supremo, ocupou postos-chave: foi subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil durante o governo Fernando Henrique Cardoso e, posteriormente, Advogado-Geral da União entre 2000 e 2002. Nessas funções, participou ativamente das articulações entre Executivo e Judiciário, e da afirmação da Advocacia-Geral da União como órgão de Estado. Como AGU, defendeu posições institucionais que buscavam dar estabilidade às reformas então em curso — como a previdenciária, administrativa e tributária — e ficou conhecido por sua clareza técnica e habilidade argumentativa.
O Supremo, a Constituição e os limites da política
Em 20 de junho de 2002, Gilmar Mendes foi nomeado ministro do STF, escolhido pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Desde então, permanece na Corte, atravessando diferentes conjunturas políticas e judiciais, tornando-se uma das figuras centrais do chamado "ativismo judicial" contemporâneo. Sua presença é marcada por votos longos, tecnicamente densos, e por uma oralidade firme, precisa e sempre disposta a colocar a discussão institucional no centro do debate.
Como ministro, destacou-se por sua defesa da Constituição como marco regulador da convivência democrática. Foi relator de ações emblemáticas sobre os poderes do Ministério Público, a autonomia do Banco Central, a fidelidade partidária, os limites da atuação da Polícia Federal, entre outros temas que tangenciam o equilíbrio entre os poderes. Não raro, seus votos serviram de ancoragem para decisões que resguardaram direitos fundamentais, mas também foram suporte técnico para evitar o colapso de políticas públicas em tempos de crise.
Em 2008, assumiu a presidência do STF, num momento em que a Corte começava a ganhar projeção midiática sem precedentes. À frente do tribunal, implementou uma série de medidas de gestão e modernização do Judiciário, como a digitalização de processos e a ampliação do acesso às sessões por meio de transmissões ao vivo. Seu mandato foi marcado por tentativas de conter o crescimento das chamadas "decisões monocráticas" e por defender o papel institucional do Judiciário diante das pressões externas, inclusive midiáticas. Um legado de interpretação constitucional.
Ao lado das funções judicantes, Gilmar Mendes também atuou como pensador público. Fundou e dirige o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), em Brasília, que se consolidou como centro de formação e produção intelectual de juristas e administradores públicos. No ambiente acadêmico, o IDP representa uma proposta de articulação entre teoria e prática, acolhendo debates entre os três poderes, juristas nacionais e estrangeiros, e consolidando sua proposta de um Direito comprometido com a estabilidade institucional e a racionalidade administrativa.
Um legado de interpretação constitucional
É autor de obras de referência na área constitucional, com destaque para Curso de Direito Constitucional, Jurisdição Constitucional e diversas coletâneas de votos e pareceres. Seus textos evitam o estilo retórico de muitos juristas brasileiros e preferem a exposição argumentativa sistemática, com base em doutrina comparada e jurisprudência consolidada. Essa abordagem ajudou a consolidar um modelo de ensino jurídico voltado para o concurso público e a prática estatal, com influência perceptível em gerações mais jovens de operadores do direito.
A trajetória de Gilmar Mendes também reflete a complexidade do papel do Supremo na democracia brasileira. Durante os últimos vinte anos, Mendes foi uma das vozes mais presentes na crítica à judicialização excessiva da política, mas também um dos protagonistas desse mesmo processo. Suas intervenções nos julgamentos e entrevistas são acompanhadas de perto por setores jurídicos, políticos e acadêmicos, que veem em suas análises uma tentativa constante de balancear os imperativos constitucionais com a realidade política do país.
Apesar de sua atuação firme no centro das decisões do país, Gilmar Mendes nunca abandonou o vínculo com a atividade acadêmica. Ainda ministra aulas, supervisiona pesquisas e escreve com regularidade. É presença constante em congressos, seminários e eventos jurídicos, sempre com uma agenda que combina erudição, pragmatismo e um esforço contínuo por manter vivo o debate sobre o papel da Constituição num país desigual e em constante mutação institucional.
Hoje, ao se aproximar da aposentadoria compulsória — o limite de idade para os ministros do STF é de 75 anos — Gilmar Mendes se consolida como um dos mais longevos ministros da história do tribunal. Seu legado ultrapassa os votos e decisões: está na construção de uma cultura jurídica que valoriza a estabilidade institucional, a racionalidade procedimental e a consciência de que o Direito é, antes de tudo, um instrumento para proteger a democracia e a dignidade da pessoa humana.
Ao contar sua história, compreende-se também a história recente do Brasil. Um país que testou os limites de sua jovem democracia, que ainda ensaia seu próprio equilíbrio de poderes, e que precisa, para continuar existindo como República, de figuras que se dediquem — com técnica, sobriedade e vocação — a interpretar a Constituição com a precisão de quem sabe que ela é o melhor caminho para a soberania e a justiça social.
A Editora Contracorrente publicou o livro PETER HÄBERLE: Teoria Constitucional para a Democracia, organizado por Gilmar Mendes e Paulo Sávio Maia.