Da resistência estudantil à construção do pensamento jurídico
Nascido em Coimbra, a 5 de janeiro de 1953, José Alberto Rebelo dos Reis Lamego cresceu num Portugal atravessado por silêncios forçados e vigilâncias discretas. O regime de Salazar, ainda sólido, ditava o compasso da vida pública e privada, e a juventude que ousava sonhar com democracia era imediatamente vigiada. A adolescência de Lamego decorreu em Lisboa, onde ingressou no Liceu Pedro Nunes. Foi ali, entre carteiras de madeira e murais improvisados, que começou a perceber que a política não era somente assunto de cúpulas distantes, mas prática cotidiana, disputada nos corredores da escola e nos panfletos passados de mão em mão.
O movimento estudantil do final dos anos 1960 fervilhava em Lisboa, em especial após as eleições de 1969, quando a oposição tentou, dentro do possível, abrir fendas no edifício do Estado Novo. Lamego aderiu ao Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa (MAESL) e à Comissão Democrática Eleitoral (CDE). Mais do que um treino político, essas experiências foram laboratórios de resistência: a cada panfleto recolhido pela polícia, a cada reunião interrompida, a cada colega silenciado, a convicção política se adensava.
Quando ingressou na Faculdade de Direito de Lisboa, a militância ganhou corpo. A Associação de Estudantes era um reduto de efervescência e debate, e não demorou para que Lamego estivesse no centro da direção. A radicalização dos anos 70 o levou ao Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP), onde o discurso revolucionário encontrava eco entre jovens que não aceitavam mais conviver com a censura, a repressão e a guerra colonial.
O episódio que marcaria para sempre a trajetória de José Lamego ocorreu em 12 de outubro de 1972, no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF). Naquele dia, estudantes reunidos em um meeting contra o imperialismo testemunharam a morte de José António Ribeiro Santos, abatido por um tiro disparado por um agente da PIDE/DGS. O caos tomou conta do anfiteatro. Lamego, ao tentar impedir que a violência se transformasse em massacre, manietou o agressor em uma luta corpo a corpo. Saiu baleado na perna, mas evitou que outros colegas fossem atingidos.
A partir dali, sua vida passou a se confundir com a experiência carcerária. Internado e depois transferido para o Hospital-Prisão de Caxias, conheceu a privação do sono — 13 dias ininterruptos na primeira passagem — e longos períodos de isolamento. Voltaria a ser preso em 1973 e novamente em fevereiro de 1974, semanas antes da Revolução dos Cravos. Nessas prisões, os métodos de tortura se sofisticaram: espancamentos, suspeita de entorpecimento químico e, outra vez, privação do sono por 16 dias seguidos. Libertado somente em 26 de abril de 1974, um dia depois da queda da ditadura, acumulava 34 dias de tortura por insônia forçada. Tinha 21 anos.
Da militância à reflexão acadêmica
A experiência de resistência e sofrimento não o desviou do percurso acadêmico. Pelo contrário, fortaleceu-o. Graduou-se em Direito e construiu sólida carreira jurídica, aprofundando-se em filosofia do direito, direito internacional e direitos humanos. As cicatrizes da juventude atravessaram sua trajetória intelectual: não se tratava de erudição desconectada da realidade, mas de pensar o direito como instrumento de proteção contra os abusos do poder.
Na academia, destacou-se pela combinação entre rigor técnico e compromisso político. Leitor atento de Hans Kelsen e de outras tradições críticas, Lamego transita entre o positivismo e a reflexão normativa, sem jamais perder de vista o papel social do jurista. Não raro, sua obra foi lembrada como ponte entre mundos aparentemente inconciliáveis: o da análise abstrata da norma e o da vida concreta submetida às engrenagens do Estado.
Seu trabalho como professor também deixou marcas em gerações de estudantes. Era reconhecido pelo domínio da matéria e pela maneira como articulava exemplos históricos e experiências pessoais para iluminar conceitos jurídicos. Nas aulas, o passado da repressão política aparecia como advertência, e a teoria jurídica, como possibilidade de construir instituições mais sólidas e democráticas.
O intelectual que sobreviveu à repressão
Além da produção acadêmica, sua atuação profissional esteve ligada à defesa da democracia e da cultura jurídica em Portugal. Participou de projetos editoriais, traduziu e organizou obras centrais do pensamento jurídico, empenhando-se em aproximar os grandes clássicos da realidade lusófona. José Lamego manteve-se fiel ao espírito que o moveu nos corredores do Liceu Pedro Nunes: a crença de que a política — e, por extensão, o direito — é matéria de todos, e não privilégio de poucos.
Em um país que se reinventava após 1974, a sua biografia recorda que a democracia não foi dádiva, mas conquista. Conquista que custou sangue, noites em claro, fome e o risco de nunca voltar. José Lamego sobreviveu para testemunhar, escrever e ensinar. Sua vida é também um arquivo da resistência portuguesa, um testemunho vivo de que a construção de instituições democráticas precisa estar constantemente ancorada na memória da repressão.
Entre o passado e o futuro do direito
Hoje, ao se olhar para sua trajetória, percebe-se uma coerência rara: o jovem que enfrentou a polícia política no ISCEF é o mesmo intelectual que insiste em pensar o direito como linguagem universal da liberdade. Da clandestinidade ao espaço público da academia, do panfleto militante à cátedra, há uma linha de continuidade que dá à sua obra densidade e urgência.
Não por acaso, sua participação como organizador e tradutor em grandes projetos editoriais ganhou relevância nos últimos anos. Entre eles, destaca-se o lançamento de A Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, na Coleção Áustria-Brasil — Volume II, publicado pela Contracorrente, que reafirma o compromisso de José Lamego em tornar acessível, rigorosa e viva uma das obras centrais da ciência jurídica contemporânea.
No recém-lançado volume da Coleção Áustria-Brasil, José Lamego condensa décadas de experiência acadêmica em uma interpretação acessível e rigorosa da teoria kelseniana. “A Teoria Pura do Direito de Kelsen” nasce da sala de aula e chega ao público brasileiro como obra de referência indispensável para compreender um dos pilares da ciência jurídica contemporânea.